Algumas Lições da Arbitragem Americana
20/02/2019

Câmara de Mediação e Arbitragem


Mauricio Gomm Santos
Sócio fundador do escritório GST LLP. Advogado inscrito no Brasil e Nova Iorque e Consultor em Direito Brasileiro na Florida. Mediador e Árbitro. mauricio.gomm@gstllp.com

O Ministro Brett Kavanaugh, depois de passar por uma exótica sabatina no Senado sobre seu passado no College, fez, em Janeiro de 2019, sua estreia na Suprema Corte americana ("SC") na relatoria de dois recursos que envolvem temais arbitrais. Em um deles, no caso Henry Schein, Inc v. Archer & White Sales, Inc (No. 17-1272, the Supreme Court), o referido magistrado seguiu a corrente sedimentada pro-arbitral realçando o respeito à obediência judicial aos princípios da liberdade de contratar e da competência/competência. Em decisão unânime (algo não muito comum na SC), entendeu a Corte que não cabe ao juiz o poder de apreciar a questão inicial sobre arbitrabilidade ainda que possa entender que o pleito seja totalmente desprovido de fundamentos ("wholly groundless"). O caso chegou à SC que determinara a subida dos recursos (granted certiorari) em função de dissídio urisprudencial. O Quarto, Quinto e Sexto Circuitos (Tribunais Regionais Federais) têm posição de que é sobre o juiz (não sobre o árbitro) que recai o poder de dar o first shot, permitindo-se-lhe também apreciar o mérito, na hipótese de entender que a arbitrabilidade seja wholly groundless. Já o Décimo e Décimo primeiro Circuitos navegam em águas opostas. Com base na seção 2 da Lei Federal Americana ("FAA"), a SC reconheceu inicialmente que o juiz tem o poder de verificar se a convenção arbitral em si é válida; e se o for, não lhe cabe ir adiante; i.e., decidir se o tema é (ou não) arbitrável; tarefa que, por delegação das partes e pelo princípio da competência/competência, é de alçada inicial do árbitro.

No caso Schein, a SC deixou claro que a FAA não contempla a exceção do wholly groundless, rejeitando também argumentos de ordem prática segundo os quais seria um desperdício enviar o assunto para o árbitro quando, da convenção arbitral, ficasse claro para o juíz que a arbitrabilidade estivesse claramente desprovida de fundamentos. No entendimento do noviço Ministro, o que foi acompanhado por seus pares, tal fato tampouco merece guarida porque um árbitro bem preparado, nomeado pelas partes - a quem é dado o poder de apreciar a questão ab initio - pode entender de forma contrária, o que merece respeito do Judiciário. Esta decisão confirma a postura pro-arbitral das cortes norte-americanas, trazendo ainda à reboque a sempre batida lição às partes (e advogados) para redigirem cláusulas arbitrais de forma simples, clara e inequívoca, se e quando houver a intenção de resolver eventuais conflitos por arbitragem.

No outro caso, New Prime Inc v. Oliveira, 586 U.S Jan. 15, 2019, discutiu-se questão preliminar quanto à aplicação em si do FAA. Aliás, para bem entender o caso, é preciso ter em mente que, na legislação americana, existe a figura do "motion to compel arbitration". Com base nesta regra, quando uma das partes bate à porta do judiciário, o juiz, se convencido da validade da cláusula compromissória à luz do FAA, pode (deve) compelir as partes à arbitragem, suspendendo o processo judicial ("motion to stay"). Esta é a hipótese discutida aqui. Oliveira defendeu a inaplicabilidade do FAA, pois o caso, segundo seu entendimento, se insere na exceção dos contracts of employment of ... workers with interstate transporters, consoante a dicção da parte final da Seção 1 do Capítulo 1 da FAA. E se este diploma não se aplica, falece ao juiz o poder para apreciar o pedido da New Prime. A SC concordou com Oliveira, confirmando decisão das cortes inferiores, no sentido de que, à luz das características da relação contratual entre as partes e do contido no FAA, o juiz está desprovido de poder para compelir as partes à arbitragem.

Aliás, o tema da arbitragem trabalhista não só gera polêmica, debates técnicos, ideológicos, reflexões, ações e reações no Brasil. Atualmente, há perante o congresso americano um projeto de lei chamado Arbitration Fairness Act (AFA) que, em sua primeira versão, visava a tirar a validade de cláusulas arbitrais quando a matéria versasse não só sobre contrato de trabalho, mas também adesão, franquia, consumo, e ainda nas hipóteses de existência de diferente bargaining power entre as partes. Ora, para ficarmos apenas com o último tópico, em quase todo contrato é possível, pelo menos em tese, argumentar que houve diferença de poder de barganha no momento da contratação. A invalidade do pre-dispute arbitral agreement, se vingasse na integralidade a proposta então existente, poderia levar o regime americano a um arbitral earthquake, haja vista que a tese da exceção da diferença de poder de barganha seria, por certo, exaustivamente utilizada, instigando preliminar litigiosidade, aumento de tempo, custos e principalmente de imprevisibilidade. O projeto de lei sofreu alterações e não caminhou. Recentemente, foi reapresentado para invalidar cláusulas compromissórias relacionadas a employment dispute, consumer dispute, antitrust dispute, or civil rights dispute.

Há sempre uma certa apreensão na comunidade arbitral americana quando surge qualquer proposta legislativa que visa a alterar a prática arbitral, sobretudo iniciativas que pretendem modificar ou modernizar o FAA. O receio de se abrir uma caixa de pandora é patente, o que justifica até agora a imutabilidade do quase centenário FAA, deixando para o judiciário moldar a evolução do instituto. Ademais, câmaras arbitrais e instituições voltadas ao desenvolvimento da arbitragem nos EUA, a exemplo do CBAr e Conima no Brasil, sempre acompanham propostas e seus respectivos passos legislativos para evitar que grupos ou correntes representativos de um setor prevaleçam trazendo manchas, lombadas ou retrocessos ao uso da arbitragem, por mais sério que seja o propósito. De qualquer sorte, considerando que o Congresso americano encontra-se assoberbado por iniciativas barulhentas e desafiadoras do chefe do executivo atual, temas arbitrais são (bem) menos sexy, se comparados à discussão sobre a liberação de recursos para a construção de muro na fronteira sul ou mesmo agruras relacionadas ao fechamento de agências federais, para ficarmos apenas com dois exemplos.

Outro tema palpitante, embora a discussão não seja atual, diz respeito à figura tipicamente yankee do Manifest Disregard of the Law (MDL). Trata-se de uma construção jurisprudencial (portanto fora das hipóteses expressamente previstas no FAA), usada, em caráter excepcional, quando o juiz se convence de que o árbitro conhecia a lei (jurisprudência) - já pacificada - mas deliberadamente recusou-se a aplicá-la. Apesar de causar arrepios a advogados não americanos, sua utilização, nas hipóteses de pleitos anulatórios em arbitragens internacionais com sede nos EUA, é pouco provável. Mas, se a preocupação não reside em torno da discussão sobre o suposto erro deliberado e manifesto do árbitro, a teoria do MDL tem sido usada pelo Judiciário em situações outras quando o juiz percebe uma atitude insistentemente procastinatória da parte - na grande maioria com argumentos frívolos - para impedir a execução do laudo.

O caso seminal foi Harbert International LLc v. Hercules Steel Company, 441 F.3d 905 (11th Cir. 2006). Harbert perdeu a arbitragem e iniciou uma via sacra judicial visando à anulação do laudo que chegou ao Tribunal Federal do 11 Circuito. Pela precisão do recado e objetividade vernacular vale à pena trazer trecho do julgado na sua redação original: When a party who loses an arbitration award assumes a never-say-die attitude an drags the dispute through the court system without an objectively reasonable belief it will prevail, the promise of arbitration is broken. Arbitration's allure is dependent upon the arbitrator being the last decision maker in all but the most unusual cases. The more cases there are, like this one, in which the arbitrator is only the first stop along the way, the less arbitration there will be. If arbitration is to be a meaningful alternative to litigation, the parties must be able to trust that the arbitrator's decision will be honored sooner instead of later.

Ao ter enxergado esta postura de never-say-die à arbitragem, o 11 Circuito considerou aplicar sanções não só à parte mas também ao seu advogado. Mas, como tal pleito não fora solicitado pela parte vitoriosa, o referido tribunal evitou, naquele momento, fazê-lo, embora ter reconhecido ser possuidor de poderes para tal. Porém - e aqui é o ponto cabe pausa - a citada corte colocou os usuários da arbitragem on notice, nos seguintes termos: The warning this opinion provides is that in order to further the purpose of the FAA and to protect arbitration as a remedy we are ready, willing, and able to consider imposing sanctions in appropriate cases. While Harber and its counsel did not have the benefit of this notice and warning, those who pursue similar litigation position in the future will. E de fato, o precedente Harber tem sido usado em outros casos para aplicar sanções às partes e advogados.

Portanto, outra lição para advogados envolvidos em arbitragens internacionais, independentemente do caráter monista ou dualista da legislação debaixo da qual estão acostumados a operar, é levar em consideração que, nestas hipóteses, não se está diante apenas de uma arbitragem em outro país, outra sede ou, "apenas" em outro idioma. A arbitragem internacional - ou doméstica, com componentes estrangeiros - pode, como se sabe, contemplar um amálgama legislativo composto desde meras diferenças, respeitados avanços, interessantes particularidades a até preocupantes recados. O conhecimento que dispomos, somados à prática diária, serve como importante starting point para mantermo-nos (árbitros e advogados) escoteiramente alerta. Aliás, a beleza da arbitragem é justamente esta: enxergar a gangorra dos avanços e retrocessos, similaridades e diferenças éticas, comportamentais, legais e judiciais que nos impõem atenção, dedicação e estudo constante para o bom acompanhamento e exercício da arbitragem doméstica e sobretudo internacional.